Tuesday, January 10, 2006

O monumento que passa pela cidade

Ele é o melhor amigo dos vira-latas de Cachoeirinha, anda sempre com uns três ou quatro ao seu redor e sempre são cachorros diferentes, embora todos estejam maltratados pela fome e pela sarna. Em uma cidade sem qualquer atrativo turístico, histórico ou cultural, ele pode ser considerado um cartão de visitas. Leva vantagem até sobre os bandidos e políticos porque é perene: não se envolve em riscos próprios da criminalidade nem tem uma carreira meteórica como os demagogos do poder público. Faz uns trinta anos que perambula pela principal avenida, a Flores da Cunha, e todos que costumam passar por lá vislumbram com facilidade sua figura suja, seu rosto transtornado, e sentem o fedor que irradia. Quando a ponte entre Porto Alegre e Cachoeirinha ainda era de madeira, ele já era um mito.

Zé Louco tornou-se conhecido por gerações principalmente por representar o ápice do despojamento que um humano pode alcançar. Bermuda e camiseta compõem sua indumentária clássica, assim como as sandálias Havaianas, arrastadas com pesar. Especula-se que tenha entre 50 e 60 anos. A pele totalmente coberta por uma camada espessa de poeira que se torna substancialmente mais grossa nos pés. O cabelo grosso e duro de sujeira, a barba escura, não muito volumosa. Seu principal adereço é a garrafa de cachaça, quase uma extensão do braço. Olhos injetados de louco. Até hoje, nenhuma atitude violenta sua foi denunciada, comunica-se apenas para pedir bebida ou comida. De resto, roga pragas aos céus, esmurra o ar. Um Rasputin sem Deus e sem Rússia.

É aquele tipo de andarilho plenamente acostumado à convivência com os demais transeuntes, não costuma ser tripudiado por jovens, muitos até lhe dedicam certo carinho distante, sem qualquer compromisso. Alguns adolescentes vagabundos e rebeldes chegam a lhe conferir uma certa aura de misticismo e insanidade que lhes dá a tranqüilidade necessária para voltar para debaixo de seus cobertores, em dia com o compromisso ideológico: se alguém assim existe, podemos seguir nossas vidas.

Em momentos e locais diferentes, Zé Louco esteve presente na vida dos cidadãos de Cachoeirinha. Ele é como o monumento que se move pela cidade, o personagem que não virou estátua, o Laçador com pernas articuláveis. Quando há um comício ou passeata de determinado grupo político, lá encontra-se sua figura pestilenta e cavernosa, acompanhando a massa, invariavelmente gritando bordões
contra o político em questão. Gremista convicto, Zé Louco saudou por semanas o Bahia no distante ano de 1989, quando os nordestinos ganharam o campeonato nacional em cima do Inter. Ciceroneado por um cão ingênuo, brandia os punhos no ar e gritava: “Bahia! Bahia!”.

Dizem que provém de família abastada e que em algum ponto crítico de sua vida a realidade ficou um pouco mais distante, mas nada se conhece verdadeiramente sobre ele. Pessoas de diversos pontos da cidade, de comerciantes a desocupados, juram que já o viram vestido com roupas limpas, penteado, escanhoado e convenientemente limpo. Tal estado de assepsia seria decorrente de suas raras visitas ao lar, onde familiares tratam-no com afeto e sabão. Duas semanas na rua, porém, desfazem todo o cuidado estético e devolvem Zé Louco ao seu estado natural, que o tornou conhecido no município e transformou-o em uma lenda imunda e fantasmagórica, que erra sem sossego sob as inconveniências do tempo, urrando contra algo que apenas ele consegue ver.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Finalmente, um JORNALISTA. Sensacional.

4:37 AM  
Anonymous Anonymous said...

"Um Rasputin sem Deus e sem Rússia."

:~

E é uma espécie de crença popular que andarilhos de rua têm origem nobre.

Hermano

8:09 AM  
Anonymous Anonymous said...

Douglas, biografia pela Cia das Letras já!

8:12 AM  
Anonymous Anonymous said...

Esse texto rolou pelos e-mails aqui da agência. Muito afudê rapaz!

5:21 AM  

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